Saúde lésbica: Especificidades de cuidado a saúde e educação sexual

A princípio, escrevo esse texto exclusivamente a mulheres lésbicas (mas pode também adequar-se a homens transexuais e a mulheres bissexuais que estão em um relacionamento lésbico), pois em torno da nossa sexualidade ainda há grande tabu. E esse acontecimento se da justamente pela nossa anatomo-fisiologia, e pelo papel político-social de invisibilidade que nossa sexualidade carrega. Somos corpos políticos invisíveis em todos os âmbitos, inclusive na saúde.
E falando um pouco dessa invisibilidade feminina aos serviços de saúde mais precisamente no Brasil, vou contar um pouco sobre como se deu esse acesso com o que conhecemos como Política Nacional de Saúde da Mulher
A saúde da mulher foi incorporada às políticas nacionais de saúde nas primeiras décadas do século XX, sendo limitada, nesse período, às demandas relativas à gravidez e ao parto. Traduziam uma visão restrita sobre a mulher, baseada em sua especificidade biológica materna e no seu papel social de mãe e doméstica, responsável pela criação, pela educação e pelo cuidado com a saúde dos filhos e demais familiares.
As mulheres organizaram-se e argumentaram que as desigualdades nas relações sociais entre homens e mulheres se traduziam também em problemas de saúde que afetavam particularmente a população feminina. Tais mulheres reivindicaram, portanto, sua condição de sujeitos de direito, com necessidades que extrapolam o momento da gestação e parto, demandando ações que lhes proporcionassem a melhoria das condições de saúde em todas os ciclos de vida.
Em 1984, o Ministério da Saúde elaborou o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), marcando, sobretudo, uma ruptura conceitual com os princípios norteadores da política de saúde das mulheres e os critérios para eleição de prioridades neste campo (BRASIL, 1984).
O novo programa para a saúde da mulher incluía ações educativas, preventivas, de diagnóstico, tratamento e recuperação, englobando a assistência à mulher em clínica ginecológica, no pré-natal, parto e puerpério, no climatério, em planejamento familiar, DST, câncer de colo de útero e de mama, além de outras necessidades identificadas a partir do perfil populacional das mulheres (BRASIL, 1984).
Em 2003, a Área Técnica de Saúde da Mulher identifica ainda a necessidade de articulação com outras áreas técnicas e da proposição de novas ações, quais sejam: atenção às mulheres rurais, com deficiência, negras, indígenas, presidiárias e lésbicas e a participação nas discussões e atividades sobre saúde da mulher e meio ambiente.

Ainda no campo político de saúde específico, em 2011 foi instituída pela portaria nº 2.836/2011 a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. E em 2013, foi disponibilizado pelo Ministério da Saúde a cartilha “Mulheres Lésbicas e Bissexuais — Direitos, Saúde e Participação Social”. A partir disso o campo da saúde ficou mais humanizado e acessível a todas as mulheres lésbicas e bissexuais (na prática essa resolutibilidade e acessibilidade é muito falha).
Depois desse apanhado geral, voltamos a nós!
Somos o grupo sexual com a menor taxa de prevenção no sexo (cerca de 2%, segundo pesquisa feita em 2012 pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo) e isso se dá por alguns fatores: a falta de informação sobre nossa sexualidade na formação de profissionais de saúde é crucial para orientar lésbicas para com sua saúde íntima; medo de julgamento/lesbofobia ao procurarem os serviços de saúde e por último mas não menos importante, não termos uma sociedade preparada para lidar com o sexo envolvendo duas vulvas e duas vaginas.
Vivemos numa sociedade masculinista e falocentrica, onde tudo é voltado para o pênis e para quem se relaciona com ele.
Isso se reflete em meninas e mulheres lésbicas buscando métodos não efetivos de proteção ou até mesmo deixando de usar os “adaptáveis”, causando graves problemas de saúde, as vezes irreversíveis. E é curioso pensar que somos o único grupo entre sexualidade e gênero que não consta no grupo de risco para ISTs do Ministério da Saúde. É isso mesmo, não temos método seguros para nos relacionar sexualmente e ainda sim não temos atenção do Estado quanto a isso.
Em 2009 um estudo sobre o tema obteve o resultado de que 18% a 35% de população de mulheres que são lésbicas ou bissexuais nunca haviam realizado o exame colpocitológico (Papanicolaou/preventivo), que é imprescindível para a detecção do câncer de colo de útero. Em relação a consultas ginecológicas no geral, esse índice é de 47% de acordo com o relatório de Atenção Integral à Saúde das Mulheres Lésbicas e Bissexuais, do Ministério da Saúde.
Também é interessante expor que nas fichas em que o profissional de saúde preenche os dados para o exame papanicolau não há a opção de sexualidade, como se todas as mulheres só se relacionassem de uma só forma e com um espécime de sexo, o masculino.
Deixando um pouco de lado dados e história e com base na Política Nacional de Saúde da Mulher, trago um pouco dessa problemática envolta da nossa saúde sexual.
Mas antes de tudo, precisamos ter a mínima noção de como nosso corpo funciona. Afinal, ele nos sinaliza qualquer alteração, seja maléfica ou não.

Começando pelos órgãos sexuais e reprodutivos vulva e vagina (sim são coisas diferentes)
Tendo como função a proteção da genitália exterior por ser coberto por penugem (e por favor: eles são importantes e estão ali por um motivo!!!! alô foliculite), o monte de vênus/púbis possui pêlos mais grossos no início da puberdade, ficando mais escassos durante a menopausa. Os grandes lábios não realizam qualquer função especial, mas a aderência dos mesmos pode indicar vulvite (inflamação da vulva).
Dizer que o clitóris é um “mini pênis” ou um pênis involutivo, é misogino!
Temos ainda glândulas internas alojadas na parede vaginal chamadas bartholin, que são responsáveis pela lubrificação da vulva e vagina nas relações sexuais e na manutenção do pH da área. Essas também podem inflamar causando dor e desconforto. E sim, a excreção de urina e menstruação se dá por canais diferentes.
Por serem locais propícios para acúmulos de bactérias (úmido, quente e sem luz natural) devemos ter grande cuidado com a higiene da área, mantendo as unhas curtas e limpas (lembrem-se que essa área é extremamente sensível), realizar a limpeza com água e sabão neutro.
Um grande causador de infecção é também o modo que é feito essa higiene, nada de introduzir o chuveirinho do banheiro na vagina e limpeza com papel higiênico é sempre da vulva para trás.

Falando do útero, é ele quem guarda a quarta doença que mais mata mulheres no Brasil: o câncer de colo de útero, que também é a causa mais comum de infertilidade feminina e está ligado ao HPV (Papilomavírus Humano), ambos tratáveis e evitáveis (alô menina mulheres, existe vacina para o HPV no SUS).
Responsável por 7,5% dos casos registrados no INCA em 2020, os tumores uterinos causam diversos problemas ginecológicos, tais como: hemorragias uterinas anormais e dores pélvicas. Mas as lesões do HPV (aproximadamente 130 tipos) demoram cerca de 10 anos para se desenvolver.


Endometriose: doença silenciosa

Outra doença ginecológica que afeta 10% da população feminina é a endometriose, que é diferente de endometrite. A endometrite é uma inflamação do endométrio que pode ser causada por micro-organismos sexualmente transmissíveis ou por outros tipos de bactérias.
A endometriose é caracterizada pela implantação do endométrio (tecido que reveste a cavidade uterina) fora do útero. Em um processo normal, a mulher elimina o endométrio durante a menstruação. Contudo, algumas células podem migrar no sentido oposto e se alojar na cavidade abdominal, multiplicando-se e provocando uma reação inflamatória.
No SUS (Sistema Único de Saúde) o exame que detecta o câncer de colo de útero é indicado a partir dos 25 anos mas pode ser feito antes ou depois dessa idade. Já a mamografia, que detecta precocemente o câncer de mama pode ser feita a partir dos 40 anos se essa mulher não estiver entre a população com risco elevado de desenvolver a doença.
Podendo ser realizado o autoexame por si própria também. Sobre o HPV, o SUS também disponibiliza vacina para meninas e meninos com idade entre 9 e 14 anos para os tipos de câncer mais específicos.

Bora falar um pouquinho de ISTs?
Para começar, a nomenclatura mudou pois em ISTs é possível a pessoa se contaminar sem manifestar sintomas da doença, diferente do que se imaginava com o termo DST.
1) É um mito total que mulheres lésbicas não contraem ISTs por não se relacionarem sexualmente com homens (como se estivéssemos protegidas contra ISTs). Já que a transmissão se dá por contato com sangue (amigas, transar menstruada é perigoso se você não conhece a parceira, ok?), outros fluídos e mucosas.
2) “dj bom não arranha disco”. Se a vulva e vagina fossem discos, talvez não houvesse problema, mas elas não são. Isso se trata de cuidado e higiene consigo e sua parceira. Unhas grandes podem abrigar até 32 tipos de bactérias e 28 espécies de fungos que causam infecções graves. Se você tem a intenção de transar com mulheres, corte as unhas e lave as mãos antes do ato.
3) Transar de bexiga cheia é uma excelente situação para as bactérias que naturalmente vivem na área urogenital por termos uma uretra curtinha e perto do ânus. É também um dos grandes causadores de infecção urinária. Faça xixi antes e depois de cada transa.
4) Alimentos e vulva são duas coisas que definitivamente NÃO combinam. Qualquer coisa que não seja de contato íntimo com a região (sex toys por exemplo) não deve ser utilizado na vulva. Caso utilizem, lavem o brinquedo depois de cada relação. Se usarem em orifício anal depois do vaginal/oral (ou vice-versa), troquem a camisinha.
O pH vaginal é ácido e tem que estar regulado entre 3,8 e 4,5 para que as bactérias próprias da área possam viver em harmonia com você sem causar danos. Comida e bebidas são na boca, não na vulva. Depois as gatas aparecem com candidíase e juram que não sabem o porque!
Todas as patologias citadas possuem tratamento gratuito garantido pelo SUS e características próprias, variando entre dor ao urinar, verrugas na região genital e secreção. Podendo ter outros tipos de transmissão além do sexo.

Algumas sintomatologias de ISTs:


Dentre todos esses meios de prevenção, a calcinha de látex é interessante mas não é economicamente acessível já que seu preço varia entre R$ 10 e R$ 28. Assim como o dental dam, que geralmente está acima dos R$ 100,00.
Já a luva de látex e as camisinhas feminina e masculina talvez sejam os meios de prevenção mais razoável (apesar de que chupar plástico deve ser ruim demais, então recomendo que façam exames de 1 em 1 ano). Podendo ser encontradas nos postos de saúde de graça e nas farmácias por um preço bem bacaninha.
Espero ter ajudado no entendimento e esclarecido dúvidas sobre saúde sexual lésbica. O assunto é muito mais longo, técnico e específico mas procurei sintetizar ao máximo o conteúdo.
Lembrando que essas dicas não substituem consultas médicas ginecológicas, então façam exames de sangue e urina ao menos uma vez ao ano e testes rápidos para ISTs ao entrar e sair de algum relacionamento. Lembrem-se que quanto mais parceiros tiverem, mais provável é a contaminação.
Autocuidado é sobre saúde física também. Cuidem de vocês e de quem vocês amam.

Referências:
A Nicolle me autorizou a usar a arte dela no texto e ela tem uma cartilha ilustrada sobre saúde sexual lésbica também (https://docero.com.br/doc/nxc00cs)
https://twitter.com/nicollevelcro
https://www.instagram.com/vlkrr/
https://herself.com.br/blog/saude-sexual-mulheres/
https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/12611
https://www.ufrgs.br/petbiologia/wp-content/uploads/2019/07/panfleto-sexo-seguro.pdf
https://topview.com.br/self/tipos-de-vulva/
https://www.albertofreitas.med.br/blog/2018/7/13/vulva-vagina-clitris
https://www.ativo.com/corrida-de-rua/treinamento-de-corrida/candidiase-como-evita-la/
https://www.canva.com/design/DAED81eFCFU/wsQbeSYj472ILij98xzRfQ/edit
https://www.drakeillafreitas.com.br/risco-de-transmissao-do-hiv-de-acordo-a-exposicao/
https://www.drakeillafreitas.com.br/os-riscos-do-sexo-oral/
http://abiaids.org.br/em-nota-abia-esclarece-duvidas-sobre-transmissao-do-hiv/29054
https://super.abril.com.br/saude/quais-sao-as-doencas-transmissiveis-no-sexo-entre-duas-mulheres/
https://helloclue.com/pt/artigos/sexo/aprenda-a-se-prevenir-de-ists-no-sexo-lesbico
http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/o-que-sao-ist
https://www.sodelas.com.br/noticia/ph-vaginal-entenda-o-que-e-e-como-ele-protege-sua-saude-intima
• BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em
Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. Manual de
Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis /
Brasília: Ministério da Saúde. 2005. pág.12/16 a 18/25 a 27/ 51