Saúde lésbica: Especificidades de cuidado a saúde e educação sexual

Aygra Rivera
10 min readAug 29, 2020

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A princípio, escrevo esse texto exclusivamente a mulheres lésbicas (mas pode também adequar-se a homens transexuais e a mulheres bissexuais que estão em um relacionamento lésbico), pois em torno da nossa sexualidade ainda há grande tabu. E esse acontecimento se da justamente pela nossa anatomo-fisiologia, e pelo papel político-social de invisibilidade que nossa sexualidade carrega. Somos corpos políticos invisíveis em todos os âmbitos, inclusive na saúde.

E falando um pouco dessa invisibilidade feminina aos serviços de saúde mais precisamente no Brasil, vou contar um pouco sobre como se deu esse acesso com o que conhecemos como Política Nacional de Saúde da Mulher

A saúde da mulher foi incorporada às políticas nacionais de saúde nas primeiras décadas do século XX, sendo limitada, nesse período, às demandas relativas à gravidez e ao parto. Traduziam uma visão restrita sobre a mulher, baseada em sua especificidade biológica materna e no seu papel social de mãe e doméstica, responsável pela criação, pela educação e pelo cuidado com a saúde dos filhos e demais familiares.

As mulheres organizaram-se e argumentaram que as desigualdades nas relações sociais entre homens e mulheres se traduziam também em problemas de saúde que afetavam particularmente a população feminina. Tais mulheres reivindicaram, portanto, sua condição de sujeitos de direito, com necessidades que extrapolam o momento da gestação e parto, demandando ações que lhes proporcionassem a melhoria das condições de saúde em todas os ciclos de vida.

Em 1984, o Ministério da Saúde elaborou o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), marcando, sobretudo, uma ruptura conceitual com os princípios norteadores da política de saúde das mulheres e os critérios para eleição de prioridades neste campo (BRASIL, 1984).

O novo programa para a saúde da mulher incluía ações educativas, preventivas, de diagnóstico, tratamento e recuperação, englobando a assistência à mulher em clínica ginecológica, no pré-natal, parto e puerpério, no climatério, em planejamento familiar, DST, câncer de colo de útero e de mama, além de outras necessidades identificadas a partir do perfil populacional das mulheres (BRASIL, 1984).

Em 2003, a Área Técnica de Saúde da Mulher identifica ainda a necessidade de articulação com outras áreas técnicas e da proposição de novas ações, quais sejam: atenção às mulheres rurais, com deficiência, negras, indígenas, presidiárias e lésbicas e a participação nas discussões e atividades sobre saúde da mulher e meio ambiente.

Ainda no campo político de saúde específico, em 2011 foi instituída pela portaria nº 2.836/2011 a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. E em 2013, foi disponibilizado pelo Ministério da Saúde a cartilha “Mulheres Lésbicas e Bissexuais — Direitos, Saúde e Participação Social”. A partir disso o campo da saúde ficou mais humanizado e acessível a todas as mulheres lésbicas e bissexuais (na prática essa resolutibilidade e acessibilidade é muito falha).

Depois desse apanhado geral, voltamos a nós!

Somos o grupo sexual com a menor taxa de prevenção no sexo (cerca de 2%, segundo pesquisa feita em 2012 pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo) e isso se dá por alguns fatores: a falta de informação sobre nossa sexualidade na formação de profissionais de saúde é crucial para orientar lésbicas para com sua saúde íntima; medo de julgamento/lesbofobia ao procurarem os serviços de saúde e por último mas não menos importante, não termos uma sociedade preparada para lidar com o sexo envolvendo duas vulvas e duas vaginas.

Vivemos numa sociedade masculinista e falocentrica, onde tudo é voltado para o pênis e para quem se relaciona com ele.

Isso se reflete em meninas e mulheres lésbicas buscando métodos não efetivos de proteção ou até mesmo deixando de usar os “adaptáveis”, causando graves problemas de saúde, as vezes irreversíveis. E é curioso pensar que somos o único grupo entre sexualidade e gênero que não consta no grupo de risco para ISTs do Ministério da Saúde. É isso mesmo, não temos método seguros para nos relacionar sexualmente e ainda sim não temos atenção do Estado quanto a isso.

Em 2009 um estudo sobre o tema obteve o resultado de que 18% a 35% de população de mulheres que são lésbicas ou bissexuais nunca haviam realizado o exame colpocitológico (Papanicolaou/preventivo), que é imprescindível para a detecção do câncer de colo de útero. Em relação a consultas ginecológicas no geral, esse índice é de 47% de acordo com o relatório de Atenção Integral à Saúde das Mulheres Lésbicas e Bissexuais, do Ministério da Saúde.

Também é interessante expor que nas fichas em que o profissional de saúde preenche os dados para o exame papanicolau não há a opção de sexualidade, como se todas as mulheres só se relacionassem de uma só forma e com um espécime de sexo, o masculino.

Deixando um pouco de lado dados e história e com base na Política Nacional de Saúde da Mulher, trago um pouco dessa problemática envolta da nossa saúde sexual.

Mas antes de tudo, precisamos ter a mínima noção de como nosso corpo funciona. Afinal, ele nos sinaliza qualquer alteração, seja maléfica ou não.

Começando pelos órgãos sexuais e reprodutivos vulva e vagina (sim são coisas diferentes)

Tendo como função a proteção da genitália exterior por ser coberto por penugem (e por favor: eles são importantes e estão ali por um motivo!!!! alô foliculite), o monte de vênus/púbis possui pêlos mais grossos no início da puberdade, ficando mais escassos durante a menopausa. Os grandes lábios não realizam qualquer função especial, mas a aderência dos mesmos pode indicar vulvite (inflamação da vulva).

Dizer que o clitóris é um “mini pênis” ou um pênis involutivo, é misogino!

Temos ainda glândulas internas alojadas na parede vaginal chamadas bartholin, que são responsáveis pela lubrificação da vulva e vagina nas relações sexuais e na manutenção do pH da área. Essas também podem inflamar causando dor e desconforto. E sim, a excreção de urina e menstruação se dá por canais diferentes.

Por serem locais propícios para acúmulos de bactérias (úmido, quente e sem luz natural) devemos ter grande cuidado com a higiene da área, mantendo as unhas curtas e limpas (lembrem-se que essa área é extremamente sensível), realizar a limpeza com água e sabão neutro.

Um grande causador de infecção é também o modo que é feito essa higiene, nada de introduzir o chuveirinho do banheiro na vagina e limpeza com papel higiênico é sempre da vulva para trás.

Visão parcial do aparelho reprodutor e urinário feminino

Falando do útero, é ele quem guarda a quarta doença que mais mata mulheres no Brasil: o câncer de colo de útero, que também é a causa mais comum de infertilidade feminina e está ligado ao HPV (Papilomavírus Humano), ambos tratáveis e evitáveis (alô menina mulheres, existe vacina para o HPV no SUS).

Responsável por 7,5% dos casos registrados no INCA em 2020, os tumores uterinos causam diversos problemas ginecológicos, tais como: hemorragias uterinas anormais e dores pélvicas. Mas as lesões do HPV (aproximadamente 130 tipos) demoram cerca de 10 anos para se desenvolver.

Estágios do câncer de colo de útero
Estágios do câncer de colo de útero

Endometriose: doença silenciosa

Outra doença ginecológica que afeta 10% da população feminina é a endometriose, que é diferente de endometrite. A endometrite é uma inflamação do endométrio que pode ser causada por micro-organismos sexualmente transmissíveis ou por outros tipos de bactérias.

A endometriose é caracterizada pela implantação do endométrio (tecido que reveste a cavidade uterina) fora do útero. Em um processo normal, a mulher elimina o endométrio durante a menstruação. Contudo, algumas células podem migrar no sentido oposto e se alojar na cavidade abdominal, multiplicando-se e provocando uma reação inflamatória.

No SUS (Sistema Único de Saúde) o exame que detecta o câncer de colo de útero é indicado a partir dos 25 anos mas pode ser feito antes ou depois dessa idade. Já a mamografia, que detecta precocemente o câncer de mama pode ser feita a partir dos 40 anos se essa mulher não estiver entre a população com risco elevado de desenvolver a doença.

Podendo ser realizado o autoexame por si própria também. Sobre o HPV, o SUS também disponibiliza vacina para meninas e meninos com idade entre 9 e 14 anos para os tipos de câncer mais específicos.

Bora falar um pouquinho de ISTs?

Para começar, a nomenclatura mudou pois em ISTs é possível a pessoa se contaminar sem manifestar sintomas da doença, diferente do que se imaginava com o termo DST.

1) É um mito total que mulheres lésbicas não contraem ISTs por não se relacionarem sexualmente com homens (como se estivéssemos protegidas contra ISTs). Já que a transmissão se dá por contato com sangue (amigas, transar menstruada é perigoso se você não conhece a parceira, ok?), outros fluídos e mucosas.

2) “dj bom não arranha disco”. Se a vulva e vagina fossem discos, talvez não houvesse problema, mas elas não são. Isso se trata de cuidado e higiene consigo e sua parceira. Unhas grandes podem abrigar até 32 tipos de bactérias e 28 espécies de fungos que causam infecções graves. Se você tem a intenção de transar com mulheres, corte as unhas e lave as mãos antes do ato.

3) Transar de bexiga cheia é uma excelente situação para as bactérias que naturalmente vivem na área urogenital por termos uma uretra curtinha e perto do ânus. É também um dos grandes causadores de infecção urinária. Faça xixi antes e depois de cada transa.

4) Alimentos e vulva são duas coisas que definitivamente NÃO combinam. Qualquer coisa que não seja de contato íntimo com a região (sex toys por exemplo) não deve ser utilizado na vulva. Caso utilizem, lavem o brinquedo depois de cada relação. Se usarem em orifício anal depois do vaginal/oral (ou vice-versa), troquem a camisinha.

O pH vaginal é ácido e tem que estar regulado entre 3,8 e 4,5 para que as bactérias próprias da área possam viver em harmonia com você sem causar danos. Comida e bebidas são na boca, não na vulva. Depois as gatas aparecem com candidíase e juram que não sabem o porque!

Todas as patologias citadas possuem tratamento gratuito garantido pelo SUS e características próprias, variando entre dor ao urinar, verrugas na região genital e secreção. Podendo ter outros tipos de transmissão além do sexo.

Algumas sintomatologias de ISTs:

Dentre todos esses meios de prevenção, a calcinha de látex é interessante mas não é economicamente acessível já que seu preço varia entre R$ 10 e R$ 28. Assim como o dental dam, que geralmente está acima dos R$ 100,00.

Já a luva de látex e as camisinhas feminina e masculina talvez sejam os meios de prevenção mais razoável (apesar de que chupar plástico deve ser ruim demais, então recomendo que façam exames de 1 em 1 ano). Podendo ser encontradas nos postos de saúde de graça e nas farmácias por um preço bem bacaninha.

Espero ter ajudado no entendimento e esclarecido dúvidas sobre saúde sexual lésbica. O assunto é muito mais longo, técnico e específico mas procurei sintetizar ao máximo o conteúdo.

Lembrando que essas dicas não substituem consultas médicas ginecológicas, então façam exames de sangue e urina ao menos uma vez ao ano e testes rápidos para ISTs ao entrar e sair de algum relacionamento. Lembrem-se que quanto mais parceiros tiverem, mais provável é a contaminação.

Autocuidado é sobre saúde física também. Cuidem de vocês e de quem vocês amam.

Referências:

http://bvsms.saude.gov.br/ultimas-noticias/2041-saude-lanca-campanha-sobre-saude-de-mulheres-lesbicas-e-bissexuais

A Nicolle me autorizou a usar a arte dela no texto e ela tem uma cartilha ilustrada sobre saúde sexual lésbica também (https://docero.com.br/doc/nxc00cs)

https://twitter.com/nicollevelcro

https://www.instagram.com/vlkrr/

https://herself.com.br/blog/saude-sexual-mulheres/

https://unaids.org.br/2018/08/visibilidade-lesbica-um-momento-para-refletir-sobre-direitos-saude-e-bem-estar-das-mulheres/

https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/12611

https://www.ufrgs.br/petbiologia/wp-content/uploads/2019/07/panfleto-sexo-seguro.pdf

https://topview.com.br/self/tipos-de-vulva/

https://www.albertofreitas.med.br/blog/2018/7/13/vulva-vagina-clitris

https://www.ativo.com/corrida-de-rua/treinamento-de-corrida/candidiase-como-evita-la/

https://www.canva.com/design/DAED81eFCFU/wsQbeSYj472ILij98xzRfQ/edit

https://www.drakeillafreitas.com.br/risco-de-transmissao-do-hiv-de-acordo-a-exposicao/

https://www.drakeillafreitas.com.br/os-riscos-do-sexo-oral/

http://abiaids.org.br/em-nota-abia-esclarece-duvidas-sobre-transmissao-do-hiv/29054

https://super.abril.com.br/saude/quais-sao-as-doencas-transmissiveis-no-sexo-entre-duas-mulheres/

https://helloclue.com/pt/artigos/sexo/aprenda-a-se-prevenir-de-ists-no-sexo-lesbico

https://www.sbmfc.org.br/noticias/mulheres-lesbicas-precisam-de-orientacao-quanto-a-infeccoes-sexualmente-transmissiveis/

https://www.google.com/search?sxsrf=ALeKk02KCvnEpxKhtEPpaP5jSXSOJ9SiZQ%3A1597003637481&ei=dVcwX7H8HL3F5OUPyIS18AU&q=+ISt%27s+narquil%C3%A9%3F&oq=+ISt%27s+narquil%C3%A9%3F&gs_lcp=CgZwc3ktYWIQAzoECAAQR1CuT1iPgAFgy4IBaABwAXgAgAHwAogB2xCSAQMzLTaYAQCgAQGqAQdnd3Mtd2l6wAEB&sclient=psy-ab&ved=0ahUKEwjxipGU9o7rAhW9IrkGHUhCDV4Q4dUDCAw&uact=5

https://www.google.com/search?q=como+adaptar+uma+camisinha+sexo+l%C3%A9sbico&sxsrf=ALeKk02rFwwRR7kdy09zHDMVbRuamrK4MQ:1596916545363&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwj_ibDbsYzrAhWlILkGHREOCIkQ_AUoAnoECAsQBA&biw=1346&bih=615#imgrc=SAg-HotiNMTIsM

https://www.google.com/search?q=como+adaptar+uma+camisinha+sexo+l%C3%A9sbico&sxsrf=ALeKk02rFwwRR7kdy09zHDMVbRuamrK4MQ:1596916545363&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwj_ibDbsYzrAhWlILkGHREOCIkQ_AUoAnoECAsQBA&biw=1346&bih=615#imgrc=SAg-HotiNMTIsM

https://helloclue.com/pt/artigos/sexo/ists-duvidas-e-perguntas-frequentes#:~:text=Voc%C3%AA%20pode%20pegar%20IST%20com,genitais%2C%20ou%20vice%2Dversa

http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/o-que-sao-ist

https://www.sodelas.com.br/noticia/ph-vaginal-entenda-o-que-e-e-como-ele-protege-sua-saude-intima

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em

Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. Manual de

Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis /

Brasília: Ministério da Saúde. 2005. pág.12/16 a 18/25 a 27/ 51

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