Nos querem invisíveis mas nós lésbicas sempre fomos história
Dedico esse texto a todas as lésbicas que vieram antes de mim, que continuam a resistir na contemporaneidade e as que caminham comigo. E especialmente a todas que dedicaram suas vidas e/ou perduraram mesmo na imortalidade em prol de viver plenamente sua sexualidade.
Começo esse texto falando do que talvez seja a parte mais fácil e prazerosa dessa pesquisa: a definição do que é uma lésbica pelos dicionários mais conceituados, utilizados e vendidos do mundo.
Para o dicionário Houass:
“lésbica (mulher homossexual) é um substantivo feminino relativo à Ilha de Lesbos, na Grécia, ou que é natural, habitante…“
Adjetivo: “homossexual (diz-se de mulher ou relações sexuais entre mulheres); lesbíaco, lesbiano, sáfico.”
Etimologia: Lesbos (ilha grega do mar Egeu) + em razão da reputação de homossexualismo ligada ao grupo associado à poetisa grega Safo (fim do sVII-sVI a.C.), nascida e falecida em Lesbos.
Para o dicionário Michaellis:
Substantivo feminino
“Mulher que tem preferência sexual por outras mulheres; mulher homossexual; lésbia, lesbiana, paraíba, safista, sapa, sapata, sapatão, tríbade”.
Etimologia: feminino de lésbico.
Já a Um Free & Equal, uma iniciativa do Escritório de Direitos Humanos da ONU, define orientação sexual como:
“A orientação sexual refere-se à atração física, romântica e/ou emocional de uma pessoa por outras pessoas. Todo mundo tem uma orientação sexual, que faz parte de sua identidade. Homens gays e lésbicas são atraídos por pessoas do mesmo sexo que eles. Pessoas heterossexuais são atraídas por indivíduos de um sexo diferente de si mesmas”.
Antes de falarmos da luta lésbica no Brasil, vamos ao ponto onde tudo começou
Lesbos é uma ilha localizada ao nordeste do Mar Egeu, na Grécia. Tendo sua personalidade mais famosa, a poetiza Safo que nasceu em Mitilene entre 630 a.C. e 604 a.C., capital da Ilha. Pouco se sabe de sua vida pessoal mas o que a torna tão relevante são seus poemas líricos, onde ela reclamava seu amor romântico a várias mulheres.
Até o começo do século XIX o termo lésbica/sáfico (que são sinônimos) ainda não era totalmente aceito ou descrito, sendo tríbade o termo mais utilizado. Tríbade significa “aquela que roça; esfregação”, e desde os primórdios é conhecida como uma característica do ato sexual homossexual feminino, pois se dá pelo ato de friccionar reciprocamente duas vulvas ou esta em outra parte do corpo da parceira.
Lesbianidade e medicina
Em meados do século XX, a homossexualidade masculina foi tema de estudo entre a classe médica, onde estes eram avaliados mas como um grave problema social, perversão, imoralidade. Desde essa época os gays fizeram uma certa separação entre os que tinham mais passabilidade social (homens que mantinham casamentos de fachada com mulheres, as vezes também lésbicas) e os que se expressavam com trejeitos afeminados.
A homossexualidade feminina era considerada inexistente na sociedade ocidental, e por isso não a consideravam um problema significativo. Algum tempo depois sexólogos caracterizam a lesbianidade como uma insanidade ou devido a algum trauma causado pelo casamento.
Tal pensamento continuou sendo utilizado pela comunidade médica e científica até 1973, quando a Associação Americana de Psiquiatria decidiu adotar o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders — DSM). No entanto, a homossexualidade continuou na lista de doenças mentais da Organização Mundial da Saúde (OMS) até 1990, quando o CID-10 foi publicado. A homossexualidade entrou no CID (6) pela primeira vez no ano de 1948.
Os autores responsáveis pela reorganização e revisão do tema de orientação sexual a descrevem como “desconhecida mas que provavelmente refletem um dos fatores genéticos, de exposição pré-natal, experiência de vida e contexto social. A partir disso, a orientação sexual é considerada oblíqua em sociedades distintas”.
Em 17 de maio de 1990 a OMS retirou totalmente a homossexualidade (feminina e masculina) e a categoria F66 (que tem três transtornos psicológicos e comportamentais ligados à orientação sexual) da Lista Internacional de Doenças. Colocando assim a homossexualidade como tendo origem de variabilidade social e não biomédico, patológico.
Porém esse feito não desassocia homossexuais das linhas chamadas “curativas”, seja por meio de terapias de reorientação sexual praticada com frequência por instituições manicomiais (eletrochoques e lobotomia), igrejas de todos os seguimentos religiosos e alguns profissionais de saúde, como psicólogos.
No Brasil a prática desse tipo de método é proibida desde 1999, pois o Conselho Federal de Psicologia entende que não há embasamento científico comprovando a eficácia da prática, além de violar a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Deixo aqui três filmes que retratam bem como homossexuais eram tratados pela sociedade e comunidade científica no século XX e XXI:
Boy Erased: Uma Verdade Anulada
O jovem Jared, de apenas 19 anos, mora em uma pequena conservadora cidade do Arkansas. Ele é gay e filho de um pastor da Igreja Batista. Em um momento certo de vida, Jared é confrontado pela família e pode escolher entre arriscar ou entrar em um programa de terapia que busca “curar” sua homossexualidade.
Contra a Lei (Against The Law)
Reino Unido, 24 de março de 1954. Dez anos antes da descriminalização da homossexualidade, o jornalista Peter Wildeblood e seus amigos Lord Montagu e Michael Pitt-Rivers são condenados e presos para indecência e sodomia.
Um Amor Para Durar (Electroshock — Um amor para guardar)
O Filme baseado em uma história real, conta a história das professoras Pilar e Elvira e seu amor que perdura durante um dos mais turbulentos períodos históricos da Espanha fascista. A homossexualidade era ilegal na Espanha de Francisco Franco e Pilar é internada num manicômio, quando sua mãe descobre que sua filha é lésbica. A partir deste fato tudo muda na vida de Pilar e Elvira e elas devem lidar com os efeitos de anos de terapia com eletrochoque.
Lésbicas no século XlX e XX
Com o avanço da mecanização industrial e o desenvolvimento da sociedade, os papéis sociais femininos seguiram em não conformidade com a época. Embora muitas mulheres não fossem lésbicas, houve tal questionamento pois muitas vezes se encaixavam em comportamentos ditos masculinos.
Essas são algumas mulheres (todas lésbicas) que não correspondiam ao papel social feminino da época e chamam a atenção por isso: Florence Nigthingale, criadora de uma escola de enfermeiras em Londres (hoje é Patrona da Enfermagem); Romaine Brooks, pintora e escritora; como escritoras Natalie Barney, Virginia Woolf, Vita Sackville-West, Radclyffe Hall, Djuna Barnes, Gertrudes Stein, Emily Dickinson, Marguerite Yourcenar; como artistas Alla Nazimova, Greta Garbo e Marlene Dietrich.
Ainda no XIX, Anne Lister (1791–1840) é a “primeira lésbica da era moderna” devido às observações da sua vida íntima no seu diário, com aproximadamente 4 milhões de palavras.
No EUA entre décadas de 1970 e 1980 a lesbianidade foi atrelada a pautas feministas e ao movimento gay. Mas por inúmeras especificidades sobre sexualidade e materialidade biológica, tais grupos de mulheres não cabiam mais nesse seguimento. Sendo necessário criar um movimento que se dirige apenas a outras mulheres, nascendo ali o lesbofeminismo.
Considerando o conservadorismo e consequentemente sexismo e lesbofobia da época, ainda sim foi possível dar andamento aos estudos e teorias tanto lésbicas quanto feministas. Tendo como referência em estudo da classe Adrienne Rich, Sheila Sheffreys, Audre Lorde e tantas outras.
Cultura lésbica e simbologia
Penso que o assunto mais distorcido e ambíguo da comunidade lésbica seja sua bandeira representativa. Diferente de outros grupos, não há confirmação por alguma entidade lésbica nem em uso escala global (o que é uma pena). Aqui conto o motivo que me faz crer por que a labrys deveria ser mais divulgada e oficializada pela comunidade lésbica.
O machado de lâmina dupla (labrys): era utilizado em sociedades matriarcais, também usado pela deusa Ártemis em rituais associados à lesbianidade.
A cor roxa: homenageia um poema de Safo, onde ela fazia alusão a momentos românticos cultivando violetas com outras mulheres. E também a ameaça lavanda, como o movimento lesbofeminista ficou conhecido em 1970.
O triângulo preto invertido tem duas versões, sendo a primeira: usada na Alemanha Nazi para marcar alguns grupos de pessoas ditas antissociais/impróprias para a vida em comunidade, como prostitutas, deficientes, grevistas, alcóolatras, lésbicas e feministas.
A segunda versão fala sobre a vulva, devido a sua anatomia semelhante a um triângulo. Assim como seus pelos pubianos, simbolizado pela cor preta que se refere também a maturidade das mulheres.
“Originalmente identificava presos por prostituição e “vadiagem”, sendo usado arbitrariamente em indivíduos detidos por diversos comportamentos, incluindo lésbicas, feministas, “traidores da raça” e dissidentes”. — Judeus pela Democracia
Fazendo um pequeno adendo, há um movimento na internet sobre a utilização desse símbolo por nós e tudo o que vem com ele. Mas já tive a oportunidade de conversar com uma lésbica judia (e membros ativos da comunidade judáica) e eles nos apoiam na ressignificação do símbolo e compreendem toda a história de luta por trás da lesbianidade.
Se você tiver um pouco de boa vontade em pesquisar qualquer material de fonte confiável sobre as cores dos triângulos usados no holocausto (deixei vários links grifados e em negrito), saberá que é a cor marrom/caramelo associado ao povo Romani (ciganos), não o preto.
De qualquer forma deixo também uma thread da página “Judeus Por Democracia”, onde eles explicam a simbologia por trás de cada cor de triângulo usada pelos nazistas. E também trago o projeto da colorista Marina Amaral, onde ela coloriu milhares de fotos do Memorial e Museu de Auschwitz e também explica as cores e símbolos dados a cada vítima.
Lesbianidade é sinônimo de resistência, singularidade, priorizar mulheres e lutar por elas!
Cada uma usa o que se sente melhor representada, mas o que sempre me pergunto é:
- Não é mais fácil focar no que temos em comum (sexualidade) do que criar uma nova bandeira a cada particularidade (étnico-raciais, sociais, de classe, modo de vida etc) que surge sobre nós?
- Qual sentido em separar lésbicas baseado em estereótipos construídos socialmente (lésbicas feminilizadas usam uma bandeira e as desfeminilizadas outra) se ao final temos o mesmo em comum?
- Qual o real significado na vivência lésbica (histórico e político desde o início de tudo) possuem as outras versões de bandeiras (que são bem problemáticas por sinal)?
Movimento lésbico no Brasil
O primeiro caso de lesbofobia no Brasil se deu no ano de 1592, em Salvador. A vítima, uma portuguesa de nome Felipa de Sousa radicada no Brasil depois de ficar viúva consumou diversos casos amorosos com outras mulheres, sendo esses explícitos em cartas e especulação da vizinhança. Que foram afirmados depois pela própria.
Após a confissão, Felipa foi julgada por “práticas nefandas” pela inquisição portuguesa, foi levada presa pelas ruas do pelourinho baiano onde foi açoitada e exilada da capitania.
É bom ressaltar que a homo/lesbofobia foi introduzida no Brasil durante o processo de colonização portuguesa e posteriormente de outras nações. No período pré-cabralino/colombiano, os indígenas (homens e mulheres) homossexuais viviam em plenitude suas sexualidades, tendo relatos descritos e repassados pelo anciões e antropólogos até os dias de hoje.
O primeiro caso de homofobia no Brasil registrado em 1614 contra um indígena Tupinambá de nome Tibira (que significa homossexual no tronco tupi), onde esse foi amarrado a boca de um canhão e executado com um tiro do mesmo por franceses.
Ferro’s Bar, o Stonewall brasileiro
No dia 19 de agosto de 1983 em São Paulo acontecia um levante protagonizado por lésbicas em um bar no centro da cidade. Local esse que era ponto de encontro de comunistas e lésbicas durante a ditadura militar e após esse período, sendo um bar frequentado apenas por lésbicas.
Em 1981 o GALF (Grupo Ação Lésbica Feminista), um dos primeiros grupos politizados sobre lesbianidade do Brasil fundado por Rosely Roth e Miriam Martinho, dissidentes do grupo SOMOS (liderado por gays) divulgava no bar panfletos em relação as vivências lésbicas.
Jornal esse de nome ChanaComChana escrito pela necessidade de debates com caráter lesbofeministas. Na noite do dia 19 de agosto de 1983, quando as frequentadoras iriam começar a divulgação, o dono do bar proibiu a venda e ali com cobertura da imprensa e sem polícia, começou a confusão, onde lésbicas foram agredidas e expulsas do local. Depois de muito se negar e pelo apoio de outras minorias sociais, o comerciante voltou atrás e permitiu a venda do periódico.
Rosely Roth foi um ícone lésbico e ativista, sendo uma das primeiras a pensar e colocar em prática no Brasil a chamada “visibilidade política”, levando a lesbianidade a outro patamar de exclusividade de demandas (pois também tratava da saúde e educação sexual lésbica) e visibilidade midiática, indo a programas de tv falar sobre o assunto.
Devido ao grande peso emocional envolvido pela opressão lesbomisógina da época, Rosely se suicida em agosto de 1990 aos 31 anos.
“O movimento negro, o movimento homossexual e os grupos feministas saíram todos juntos e unificados no dia 13/06/1980 e as lésbicas fizeram a abertura dessa passeata. E a faixa que a gente estendeu no Municipal (Theatro Municipal de São Paulo) era “pelo prazer lésbico”…
Nos tínhamos uma ousadia naquele momento pra enfrentar uma situação de opressão tanto da ditadura quando a opressão de moral e bons costumes que hoje não se tem. É como se estivesse tudo resolvido, não tá! E nós saíamos com uma faixa falando do prazer lésbico, o jornal chamava chanacomchana, nós tínhamos um radicalismo, um discurso de prazer, de sexualidade das mulheres que hoje não tem”.
— Marisa Fernandes, militante comunista e lésbica ativa na luta contra a ditadura militar e a repressão sexual aos homossexuais nas décadas de 70 e 80 no Brasil.
O que é lesbofobia?
A lesbofobia se caracteriza pela intersecção de violências em razão do sexo (sexismo) e a homofobia baseada em ódio, repulsa e discriminação contra a existência de mulheres lésbicas. Sendo essa ainda não tipificada pelo ódio a mulheres lésbicas, hoje é incorporada ao crime de racismo pela lei (7716/89) no dia 13 de junho de 2019 pelo Supremo Tribunal Federal. Pode se apresentar desde a violência verbal, psicológica, até a violência física, entre outras.
É bom salientar que lésbica é mulher, portanto lesbofobia também é violência contra mulher. Já que toda violência que uma mulher heterossexual ou em uma relação hetero sofre por exemplo, nós sofremos o dobro, pelo sexismo e aversão sexual (espancamento e estupro corretivo para aprendermos a gostar de homem, a gente vê por aqui). Afinal do que serve uma mulher que não se relaciona de forma afetiva e sexual com homens numa sociedade hetero-patriarcal?
Pela carência de dados oficiais e concretos (ainda NÃO existe órgão no Brasil que faça quaisquer projeções oficiais de violência contra LGBTs), onde grande maioria desses crimes são encaixados em outras categorias (feminicídio, homofobia e lesão corporal), em 2018 pesquisadoras do Núcleo de Inclusão Social da UFRJ afim de entender como se da a lesbofobia formularam e documentaram um dossiê sobre lesbocídio no Brasil, onde se apuraram dados alarmantes.
· O estado de São Paulo é o estado que mais mata lésbicas (15%), seguido do Ceará (também com 15%) e Minas Gerais (13%).
· A motivação mais frequentes para as agressões são tiros (55%), facadas (23%), enforcamento e espancamento (juntas com 6%).
· As maiores faixas etárias das vítimas de lesbofobia fica entre 20 a 24 anos (30%), até 19 anos (23%) e 25 a 29 anos (19%).
· 66% das vítimas de lesbofobia são lésbicas desfeminilizadas.
· 83% dos casos de lesbofobia e lesbocídio são cometidos por pessoas do sexo masculino, não necessariamente com envolvimento afetivo com a vítima (desconhecido, vizinho, colega de trabalho).
Até agosto de 2018, data do dossiê foi contabilizada 110 mortes contra a existência lésbica.
A violência contra lésbicas vai muito além desses dados, pois os cyberataques acontecem com frequência nas redes sociais, vindas das próprias plataformas e/ou dos usuários destas (muitas vezes também LGBTs). Ataques incitando suicídio, estupro, agressões físicas, verbais e psicológicas contra mulheres lésbicas são comuns e frequentes na internet.
Há DIVERSOS casos de lesbofobia vindos da plataforma Instagram, feito pelo seu próprio algorítimo onde há censura de palavras e artes (muitas vezes sem conteúdo ofensivo ou explícito, como nudez feminina) referentes a lesbianidade e que foram ressignificadas por nós.
Sapatão, dyke, lésbica entre outras expressões estão na lista da plataforma. A bandeira lésbica também é alvo de represália, significando violação das diretrizes da comunidade por símbolo de ódio, quando a mesma já usada desde a década de 70.
A rejeição do estereótipo feminino de gênero provocado pela desfeminilização (que é diferente de transição) também é motivo frequente e subnotificado de violência contra mulheres lésbicas em todos os ambientes e vindo de qualquer pessoa. Pois ao assumirmos essa identidade política, o nosso lugar como mulher é retirado e nos colocam como projetos incompletos de homem. Sendo uma das maiores lutas enquanto lésbicas desfeminilizadas se amarem como mulheres e construir nossa autoestima em cima disso.
Em 2018 uma mulher foi obrigada a usar o banheiro masculino na rede atacadista Makro em Campinas, interior de São Paulo. Thais de Paula Cyriaco fora impedida de utilizar o banheiro feminino após outra funcionária ficar “incomodada” com sua aparência.
“Eu já tinha saído naquele dia, mas minha supervisora pediu que eu voltasse ao supermercado e falou pra eu começar a usar o banheiro masculino, dizendo que eu realmente parecia um menino. No começo, fiquei com medo de usar. Corro risco de ser estuprada, fico constrangida”.
Qual caminhão nunca foi interrogada numa fila de banheiro ou até mesmo retirada de uma cabine? Foi perguntada se é homem ou mulher (isso quando acham que sabem mais do que você e insistem que você é um homem ou trans pré-transição)? Ou se a roupa que você compraria era para um irmão ou namorado?
Com a pauta trans em evidência, infelizmente nós também acabamos sendo vítimas de “”confusões”” em banheiros, lojas, local de trabalho entre outros, e acusadas de transfobia quando recusamos esse papel identitário masculino e nos relacionar com o sexo oposto, que obviamente não nos cabe. Mas temos SIM o direito de ficarmos incomodadas, pois também estamos tendo nossa mulheridade e sexualidade negadas e questionadas a todo o momento.
Não pode falar de sexualidade agora. Não pode falar de lesbofobia e lésbicas morrendo agora. Não pode falar de direitos humanos agora. Quando vamos reconhecer que esse silenciamento por parte dos movimentos sociais também nos levou a esse buraco? Se não podemos defender nossas vidas e meios de existência, só sobra a narrativa deles.
Quem são as vítimas de lesbofobia e lesbocídio no Brasil?
A lesbianidade é um leque muito amplo de vivências como qualquer outro problema de violência social. E segundo o Dossiê Sobre Lesbofobia e Lesbocidio da UFRJ, dentro desse leque são as mulheres não-brancas, desfeminilizadas (mulheres que se feminilizam tem maior passabilidade social, pois não carregam o estigma da masculinidade), interioranas e pobres são as vítimas mais frequentes dessa violência.
O racismo impregnado em nossa sociedade não deixa de nos alcançar, e com isso todas mazelas que vem com ele nos acham também.
Em minha vivência o não lugar enquanto indígena e lésbica desfeminilizada pesa duplamente, pois primeiro o imaginário do que seja uma indígena é voltado a perspectiva etnocida europeia, dos livros de história e desenho animado, recheada de estupidez, sexismo, erotização e questões raciais que não cabem ao Movimento Indígena.
Quando me coloco como lésbica, assim como meus iguais também homossexuais e trans, a reação é de espanto, como se não pudesse existir uma “índia sapatão”. Além da indignação de algumas pessoas quando eu ouso a dizer que me atraio só por mulheres e quero lesbocentrar minhas relações.
Em várias sociedades indígenas há ainda outras denominações e formas de vida em relação a pessoas lgbt no geral, as vezes bem aceitas pelas comunidades, outras não tanto (muito pelo avanço das cidades e chegada de missionários cristãos). O diálogo é sempre uma opção e a medicação dos conflitos por algum líder também, pois lutamos juntos por um bem maior: nossa existência e por tudo aquilo que faz parte das nossas culturas.
Deixo aqui a fala do parente Fabrício Titiah, ativista e liderança do Povo Pataxó HãHãHãe em entrevista dada ao site Metrópoles. Ele expõe um pouco como o movimento indígena enxerga a homossexualidade:
“Minhas avós, mesmo que ainda com ar de timidez, sempre contaram de mulheres e homens que se relacionavam com pessoas do mesmo sexo “debaixo dos panos”. Mas esse olhar de rejeição e anormalidade veio através do convívio dos indígenas do meu povo com a cultura dos coronéis, que por sua vez tem a vida muito influenciada pelas igrejas cristãs”, explica o jovem @fabriciotitiah, liderança indígena do povo Pataxó HãHãHãe.
Fabrício conta que seu maior desafio é fazer com que seu povo se desprenda dos preconceitos que não são originários deles, mas sim, adquiridos por influência do homem branco.
Ele mostra que, por muitas vezes, não se sente representado pelo movimento LGBTQIA+, que assim como qualquer outra comunidade, precisa identificar as milhares de pessoas diferentes e procurar acolher todas da melhor forma.
“O relacionamento entre pessoas do mesmo sexo já era comum entre os povos originários e, aos poucos, podemos quebrar os tabus em torno da sexualidade indígena.”
Há uma variedade imensa de artigos sobre questões de gênero e sexualidades indígenas, no meu povo por exemplo, há relatos da existência da homossexualidade desde o século XVII.
Infelizmente a visibilidade e comoção com nossas violências passa despercebida até por nós mesmas.
As vítimas são mães, aquelas que defenderam a namorada de agressões, mulheres que foram agredidas por usarem o banheiro feminino, que morreram por saberem seus direitos ao exigir uma policial do sexo feminino para que fosse revistada numa blitz policial.
Mostro aqui alguns desses casos tão tristes e de natureza completamente violenta pelo simples fato dessas mulheres exercerem o direito de viver plenamente sua sexualidade:
O caso mais recente veiculado foi de uma jovem de 28 anos que foi “confundida” com um homem na loja Renner num Shopping de Belo Horizonte no último sábado, dia 21 de agosto. Amanda (uma lésbica desfem) estava experimentando uma peça de roupa quando foi surpreendida e teve sua privacidade invadida pela atendente da loja, que abriu o provador a chamando de “moço” e afirmando que ela estava no local errado. A Renner fez uma nota falando sobre inclusão.
No mês da visibilidade LGBT, uma mulher foi morta a mando do ex marido em Curitiba. Ana Paula Campestrini de 39 anos foi assinada com mais de 10 tiros quando estava chegando em casa. Divorciada do ex marido há 4 anos, Ana Paula que era mãe de 3 filhos, vivia com sua namorada há cerca de 2 anos. A motivação seria partilha de bens e guarda dos filhos, que moravam com ela. Os suspeitos foram presos e indiciados por feminicídio.
“Na legislação brasileira, o feminicídio é um crime hediondo desde 2015, quando a então presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei 13.104/2015 que define o assassinato de mulheres por “razões da condição do sexo feminino”. A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) também fala sobre as formas de violência contra as mulheres no Brasil.”
No início de julho, a vereadora pelo PSOL de Niterói Verônica Lima foi vítima de lesbofobia por um também vereador do PSOL, Paulo Eduardo Gomes. O crime aconteceu dentro da Câmara Legislativa de Niterói.
O vereador gritava em direção a ela palavras de cunho lesbofobico, além de precisar ser contido por colegas.
“Ele começou a falar alto, cada vez mais alto. Pedi que falasse baixo, três vezes. Na quarta, levantei a voz. Aí ele se levantou e me perguntou: ‘Você quer ser homem?” Eu disse: ‘Não, não quero ser homem, me respeita.’ [Ele falou] ‘Se você quer ser homem, vou te tratar como homem’.
O partido que não puniu o agressor, publicou apenas uma nota nas redes sociais repudiando o ato.
Em outubro de 2019 uma jovem de 17 anos foi brutalmente espancada por 3 homens. Thaylanne Costa Santos teve o maxilar quebrado, 14 dentes arrancados, traumatismo craniano e um corte profundo na nuca. Ela voltava de bicicleta de uma festa quando foi abordada pelos agressores portando um pedaço de pau, uma barra de concreto e um fação.
“Ela ficou banhada de sangue. O corte na nuca dava pra ver o osso. O rosto dela inflamou tanto que reabriram a ferida e encontraram farpas da madeira e britas de concreto” — Conta a mãe de Thaylanne
Mais de um ano depois do crime, os suspeitos identificados não foram presos. Um deles foi apreendido dias depois mas solto logo em seguida por falta de provas e encerramento do flagrante. O caso foi registrado como lesão corporal.
Estupro corretivo passou a integrar o Código Penal Brasileiro
Em 2019 um homem foi preso após 4 meses foragido depois de estuprar uma jovem de 21 anos. A vítima que já conhecia o agressor, ao pegar uma carona para casa foi a última a deixar o veículo.
O homem que já tinha a intenção de estuprar a mulher, não parou ao passar em frente a casa da mesma, levando-a para sua casa. Lá Jaimilton Alves aos puxões de roupa, cabelo e ameaças de morte, obrigou a vítima a se despir e cometeu o crime. O homem foi condenado a 8 anos e 8 meses de prisão pelo crime de estupro corretivo.
“A decisão aponta que ele disse para a vítima que estava estuprando ela para ensiná-la a gostar dele, que era homem, revelando uma conduta lesbofóbica”.
A partir de 24 de setembro de 2018, com a lei 13.718, o “estupro corretivo” integra o texto do Código Penal brasileiro, como causa de aumento de pena para os crimes contra a liberdade sexual, dentre eles o estupro.
Talvez o caso mais lembrado e igualmente não divulgado tanto quanto os outros seja o de Luana Barbosa dos Reis, de 34 anos. Luana foi assassinada em abril de 2014 após uma abordagem policial na esquina de casa, na cidade de Franca, interior de São Paulo.
Ela estava levando o filho até um curso quando foi abordada por um policial militar. Ao pedir para que fosse revistada por uma policial feminina (que é um direito de toda mulher, garantido pelo Artigo 249 do Código Penal), seu pedido não foi atendido e as agressões começaram.
“De acordo com a irmã, ela sofreu uma isquemia cerebral aguda causada por traumatismo crânio-encefálico. “Ela apanhou muito, estava brutalizada. Ela não conseguia abrir os olhos, toda machucada, com vermelhidão no corpo inteiro, ela não conseguia andar”, afirma Roseli.
Os réus André Donizete Camilo, Douglas Luiz de Paula e Fábio Donizete Pultz respondem por homicídio qualificado, motivo torpe, emprego de meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Em fevereiro de 2020 os três policiais iriam a júri popular. Os criminosos responderam ao processo em liberdade, e deverão ser mantidos soltos até o julgamento.
O caso ganhou proporção internacional, chegando até a ONU após afirmarem se tratar de um “caso emblemático da prevalência e gravidade da violência racista, de gênero e lesbofóbica no Brasil.”
Em julho de 2021 a Lei Maria da Penha foi alterada para modificar a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino e para criar o tipo penal de violência psicológica (incluindo coersão/manipulação) contra a mulher.
Lesbianidade para mim significa busca do reconhecimento de direitos políticos, sociais, sexuais, raciais e de autonomia aos nossos corpos e afetos. E quando eu abro mão de me colocar como um copo feminino lésbico em prol de outra pessoa independente do motivo, eu abro mão de mim, da minha existência e vivência como mulher e lésbica. A homossexualidade não é só sobre amor, pois para falarmos em amor antes de direitos humanos, precisamos estar vivos!
Quero lembrar também que nós lésbicas desfeminilizadas somos dissidentes de gênero, ou seja, não estamos em conformidade com o conceito de gênero criado e imposto pela sociedade heterossexual, ocidental, branca e capitalista. Nossa vivência enquanto mulher lésbica é baseada em realidade material, biológica como de qualquer outra, porém com nossas especificidades sociais.
Além de rompemos com a heterossexualidade e a masculinidade (pois somos o ÚNICO grupo social que rejeita o pênis em nossas relações sexuais e geralmente também nas afetivas) e com papeis de gênero desde sempre.
Sermos “desconstruídas, anti/contra-coloniais”, e não corroborativas com a ideia de gênero não é uma novidade para nós. E nem mesmo precisamos transicionar ou mudar de pronome para isso. Portanto supor que toda mulher caminhoneira é homem, está em transição, quer ser tratada com pronome masculino ou neutro por conta de estereótipo de gênero é lesbofobia!
Sincera e honestamente, não tem ser humano que mais esteja longe dos ideais coloniais e consequentemente patriarcais da sociedade do que lésbicas desfeminilizadas. Então EXIGIMOS respeito por nossa história, movimentação política e por cada mulher que continua a perseverar contra tudo e todos pelo seu direito de existir.
Por fim, peço imensamente que você sapatão ou não, consiga entender que a nossa existência enquanto lésbicas é historicamente de luta e independência. Eu não preciso do aval de outra pessoa pra ser o que sou, gritar isso pro mundo, me defender da violência lesbomisogina e principalmente: me dizer como devo viver e manifestar isso. Vivenciar a minha sexualidade como eu bem entender é um direito e eu busco exercer com toda vontade que me cabe.
Para você que está se entendendo: sinto muito dizer mas estamos sim sozinhas perante a sociedade e a comunidade lgbt; e sustentar um corpo alvo não é fácil, mas no decorrer da vida você vai encontrar quem te respeite, ame e ofereça acalento. Juro que apesar de tudo o que você leu e já viu por aí, vale MUITO a pena sustentar essa carga. Se eu tenho um orgulho nessa vida é de ser lésbica e projetar todo o meu afeto e respeito em mulheres.
Ouçam o que lésbicas tem a dizer, respeitem nossas escolhas e modos de relação! Nossos espancamentos, ameaças e mortes não podem tomar o rumo e proporções jocosas que estão tomando, principalmente dentro de um acronômio que não tem nada de senso comunitário com nós mulheres homossexuais.
Ngüe Tügümaêgüé. Çacoaymbeguyra. Tybyra. Lésbica. Sáfica. Fancha. Sargento. Cola velcro. Caminhão. Sapatão. Butch. Dyke. Big shoes.
Fique viva, se prepare
São dias e noites de amor e guerra
Fique viva, fique viva! — Fique Viva, Brisa Flow
Marcha da Visibilidade Lésbica, São Paulo — 2019